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Romance derradeiro

typewriterConfesso a vocês que fui tapeado. Deixei-me seduzir tolo ditoso e acabei na miséria, como herói de aventura, cuja falha trágica invariavelmente envolve a intrometida mocinha em perigo. Confiei na literatura como fiel depositária da vida que eu imaginava para os outros, guardiã das relações desgraçadas, cúmplice dos erros espantosos ou rotineiros que eu por ventura cometesse. Descobri que o pior deles foi ter sido escritor ingênuo e fanfarrão. Abusando de minha flexibilidade criativa, tornei-me um verdadeiro contorcionista de pensamentos. Deturpava ideias de todo o tipo, desde a hora em que acordava até quando ia dormir. Dava umas voltinhas com qualquer centelha que se arriscasse a aparecer, sem pensar nas consequencias. Assim, escrevi várias tragédias. Não poupei das dores os casais que esbocei, nem as famílias, nem os cachorros moribundos. Dei a eles rugas, ansiedades e angústias, problemas intrincados, amores mal-resolvidos, doenças repentinas e incuráveis, um desconforto total. Procurava me ater, inclusive, aos pormenores torturantes de suas vidas, que considerava mais profundos. Perturbava-os com duras realidades, os conduzia a um ardil sem retorno. E gostava de surpreendê-los com desfechos fatais. Era o meu triunfo. Fui-me apegando à tragédia. Acontece que, neste processo, subestimei o poder da literatura. De tanto vencer meus personagens, acabei me arriscando demais. Tinha convicção que era dono das histórias que escrevia. Um dia acordei achando que era Deus. Até que a literatura resolveu me por à prova. Em uma fatídica madrugada insone, revelou-me a maior de todas as tragédias, da qual eu era protagonista. Uma obra-prima definitiva. A Minha obra-prima. Deu medo que subiu pela espinha. Tentei fugir a qualquer custo. Demorei no banho, preparei café com biscoitos e nada. Tomei um ar na varanda, traguei um cigarro, nada. A tragédia continuava ali, pairando onipresente na minha mente, ela e o seu desfecho ao mesmo tempo poético e nefasto, mas principalmente inapelável. Era a sua vingança contra a minha empáfia. Quem sabe eu a tornasse uma comédia… Mas o mais árido vazio imaginativo me consumia. Foi quando, dada a inevitabilidade da morte, assumi a vaidade daquele que escreve a tragédia derradeira e teclei, sem parada, numa batalha de dois, o meu melhor final.